sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Timbuktu - Abderrahmane Sissako


Mais uma oportunidade de conhecer lugares distantes e pouco conhecidos. A Mauritânia fica no noroeste da África e faz fronteira com Argelia, Marrocos, Senegal e Mali, por exemplo, mas de sua cinematografia se tem pouco acesso.

Timbuktu é uma ótima maneira de mudar um pouco isso, Sissako faz uma ficção tocante baseada em situações reais de como grupos tentam se impor pela força, intimidação e violência.

Timbuktu é uma cidade no Mali onde culturas diferentes costumavam conviver (sounghais, árabes e tuaregues), porém esse cenário vem mudando. 

No filme o que vemos é essa pequena cidade no meio do deserto ser dominada por radicais islâmicos e tentando impor suas regras a todos os cidadãos.

Para fazer valer seus interesses passam por cima inclusive de preceitos islâmicos e entram em embate até com o representante religioso local. 

Há também situações que mostram incoerências e hipocrisias seja de um recém convertido ao islamismo que não consegue ser sincero de abrir mão da música em sua vida...

Seja de um vigilante local que fuma escondido...

Ou principalmente de homens que quebram regras em nome da atração que sentem por algumas mulheres.

Assim, o filme explicita as arbitrariedades dos radicais e se torna uma espécie de filme-denúncia.

Mas é importante ressaltar a poesia do filme, a maneira intimista como mostra algumas famílias, os pequenos conflitos cotidianos e as lindas paisagens.

Importante para que o filme não se torne instrumento de argumentação em guerras que culturas ocidentais distorcem por conta de seus próprios interesses. 

Por exemplo a França que vem apoiando o governo local de Mali contra os grupos islâmicos (e que nos acontecimentos de 2015 foram se declarando contra violências e radicalismos de islâmicos mas não de outros grupos, como os judeus). 

Ou os EUA que o colocaram na disputado de melhor filme estrangeiro no Oscar e são um dos principais defensores de guerras (que sempre se dizem contra o terror, mas são causadoras de).

Timbuktu emociona e instiga e merece ser visto para ser discutido mas também para que possa nos tocar com uma bela e triste história.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit) - Jean-Pierre e Luc Dardenne


Os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne têm apresentado um cinema sólido e antenado com problemas político, sociais e suas implicações psicológicas.

Todos seus últimos filmes - O Filho, A Criança, O Silêncio de Lorna, O Garoto de Bicicleta - já comentado aqui - têm narrativas simples que resultam profundas e intimistas. 


Em Dois dias, uma noite, a narrativa é ainda mais direta, sem qualquer situação paralela, o filme fala do conflito de uma mulher que tem seu emprego ameaçado e sua busca para mantê-lo.

O filme não tem qualquer rebuscamento, traz cruamente as situações vividas por Sandra: o recebimento da notícia em que uma votação seus colegas preferiram receber bônus do que mantê-la na equipe e o que é gerado a partir daí.

O esforço de alguns para tentar refazer a votação e mudar a opinião dos demais e a contagem regressiva dos dois dias e uma noite em que Sandra tenta conversar com seus colegas.

Sandra, brilhantemente vivida por Marion Cotillard (conhecida por trabalhos como Ferrugem e Osso, também comentado aqui) fraqueja nos momentos de dificuldade, mas tira forças do âmago (e de anti-depressivos) para enfrentar os embates com os colegas.

Ela sabe que o recebimento de mil euros é importante para eles, mas tenta fazer com que eles levem em consideração a possibilidade dela ficar desempregada.

Para alguns o filme pode parecer repetitivo pelo discurso feito diversas vezes por Sandra, mas as variações e sutilezas de cada repetição é que tornam o filme tão rico e humano.

Solidariedade, intolerância, respeito, individualismo, violência etc são alguns dos aspectos trabalhados.

Assim, vamos aos poucos nos envolvendo com a complexidade da situação e nos aproximando da personagem.

Ao mesmo tempo vamos compondo os diferentes lados de patronato e trabalhadores e vamos sendo levados para dentro do jogo do capitalismo e os xeques que tem vivido.

E sempre pela perspectiva intimista, marca dos talentosos e comprometidos irmãos.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O povo dourado somos todos nós - Cecilia Engels, Daniel Perente, Felipe Kurc


Motivados pelo desafio de saberem mais sobre nossas origens indígenas, os jovens cineastas Cecilia Engels, Daniel Perente e Felipe Kurc fazem um documentário a partir de um encontro entre o escritor Kaká Werá, autor de livros que documentam lendas indígenas, o casal alemão Winfried (maestro) e Sylvia Vogele (euritmista) e seus alunos e alunos de música e integrantes da Associação Monte Azul.

O objetivo do encontro era fazer uma apresentação de música e dança coletiva inspirada pelo mito da criação do mundo.

Assim, o documentário O povo dourado somos todos nós faz um registro interessante sobre esse encontro.

Mas tem momentos ainda mais bonitos quando se atém ao mito e o ilustra com lindas animações.

Aí está o princípio do registro e o que há de mais rico para ser tocado: o mito, a origem, a cultura indígena.

O encontro parece apenas a prova de como a arte e a cultura podem tocar, comover, inspirar e se difundir a ponto de fazer com que brasileiros e alemães interajam sem se conhecer e sem se comunicar verbalmente. 

Um dos pontos altos do documentário é quando dois jovens tentam tocar juntos e ao dar depoimento se dão conta de que é a primeira vez que tentam expressar a experiência em palavras.

O que falta ao filme é certo foco, por trazer tantos elementos encantadores acaba ficando longo e um pouco cansativo e diluindo a experiência incrível dos momentos de sincronismo e de poesia.

E que fazem ecoar em nós o pensamento de que o povo dourado realmente somos todos nós!

Os elementos do mito, cheio de figuras simbólicas inspiradas em nossas paisagens, fauna e flora e que defendem a união dos povos, a tolerância e o respeito é o que fica de mais forte, o que deve ser registrado, documentado e divulgado.

Que o documentário e o mito possam se espalhar e ser conhecidos por mais e mais público pelo Brasil e pelo mundo! O povo dourado merece!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Ida - Pawel Pawlikowski


O polonês Pawel Pawlikowski começou sua carreira cinematográfica como documentarista e mais recentemente passou às ficções.

Porém a fonte de inspiração de seu último filme, Ida, vem de histórias reais. Aqui, Pawel conta a busca de uma órfã sobre suas origens.

A jovem está prestes a fazer votos e se tornar freira quando é incentivada a procurar parentes para uma espécie de despedida, porém o encontro se torna um momento para abrir portas e não fechá-las.

A parente que encontra é uma mulher independente e solitária, que serve ao governo comunista polonês. A mulher parece viver sua vida tentando esquecer o passado trágico do holocausto, mas a presença da jovem a fazem se motivar para pesquisar o passado.

As personagens parecem buscar reconciliações com esse passado, mas os traumas vão se revelando inconciliáveis.

A maneira econômica e precisa como Pawel constrói a história é especial, não só pela fotografia PB e em enquadramento não convencional, mas pelo roteiro e apresentação das personagens. 

Apesar da temática já extremamente explorada pelo cinema, ele ainda consegue trazer frescor à narrativa. 

E o resultado é um filme intimista, delicado e profundo ao mesmo tempo, merecedor de reconhecimento e prêmios, Oscar, Bafta, European Film Awards, Toronto, entre outros.

Birdman - Alejandro González Iñárritu


Iñárritu já mostrou que tem boas premissas de história e fôlego para direção. Autor de Amores Perros, 21 Gramas e Babel, lança agora Birdman.

O filme traz questões bem interessantes sobre a vivência da indústria cultural: o talento X a fama, a arte X o comércio, o reconhecimento X o dinheiro, a imortalidade X o imediatismo etc.


Birdman conta a história de Riggan Thomson, que teria interpretado um grande super herói nos cinemas (birdman) e agora quer reconhecimento por uma produção cultural: escreve, dirige e atua numa peça que vai estrear na Broadway. Quem vive o personagem, não por acaso, é o ex-batman Michael Keaton.

Thomson vive um embate interno (que nos faz inclusive ouvir suas vozes, quase numa esquizofrenia do personagem).

Ele também se embate com o produtor da peça, o elenco, a família, seus alteregos e algozes, vividos por nomes como Edward Norton e Naomi Watts.

Além da temática instigante, Birdman tem também uma linguagem vigorosa: um ritmo frenético dado por diálogos inteligentes, longos planos sequências com ótima mise-en-scene e uma trilha sonora bem compassada.


Mas talvez exatamente essa construção tão ritmada acabem deixando o filme cansativo.

A linguagem se desgasta e a dificuldade em encerrar o conflito fazem com que o quarto final do filme caiam muito.
Birdman lança vôos várias vezes e parece que vai pousar, mas decola novamente e vai voando cada vez menos alto.

Ainda flerta com diversas metáforas sobre as identidades de super-heróis e a construção de famas hollywoodescas, mas vai caindo em espécie de pieguices.

Mesmo assim Birdman vem com frescor e é ótimo que tenha sido o grande vencedor do Oscar em 2015. Um viva aos mexicanos!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Boca de Ouro - Nelson Pereira dos Santos

Nelson Pereira dos Santos tem um bom faro para obras literárias adaptáveis e ótima mão para essa direção.
Autor da excelente adaptação Vidas Secas, de Graciliano Ramos, se destaca também na adaptação de Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues.


O texto de Nelson Rodrigues é rico por suas várias camadas e interpretações, seu talento em nos inebriar e confundir entre personagens que começam santos e aos poucos revelam seus pecados, ou que parecem grandes vilões, mas que depois descobrimos suas fraquezas... 

Diversas leituras possíveis, riqueza de detalhes, tridimensionalidade de personagens...

E em Boca de Ouro a construção dramatúrgica, propondo uma mesma história contada três vezes cada vez partindo de um sentimento.

Guigui, vivida por Odete Lara, é abordada por jornalistas sobre o bicheiro Boca de Ouro, vivido por Jece Valadão, com quem ela teve um caso no passado. Ela conta sobre Boca com despeito, reforçando seus defeitos e seu lado perverso.

Em seguida Guigui descobre que a motivação da reportagem é por conta da morte de Boca, então ela passa a ser tomada por arrependimento e tenta dar justificativas a todas as atitudes de Boca, inclusive as de caráter mais duvidáveis.


E por fim, vendo que já nada a para se preservar entre ela e Boca, faz uma nova versão onde ninguém parece santo.

O espectador então segue seus diferentes relatos, mas o “jogo” que se estabelece não é apenas pela variação da mesma história feita na primeira pessoa de Guigui, mas a narrativa do filme, que se dá em terceira pessoa, distanciado dos sentimentos da narração da moça e assim nos permite observar nas variações de cada versão o que pode ou não ser verdade, o que pode ser somado ou subtraído e, enfim, o que pode compor uma realidade mais tridimensional sem tantos fatos completamente positivos ou negativos. 

A sobreposição dos diferentes pontos de vista da mesma personagem diante dos mesmos fatos faz com que o espectador tenha que construir e reconstruir sua relação com a história e com as personagens e assim chegar a um resultado com mais ambiguidade e relatividade.

Nelson Pereira além de se apoiar no ótimo texto, faz uma construção simples e eficiente e conta com um ótimo elenco: além de Odete Lara e Jece Valadão, temos Daniel Filho e Maria Lúcia Monteiro em interpretações bem interessantes.


Filme de 1963, mas que merece nossa visita mais de 50 anos depois...