segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Solaris (Solyaris) - Tarkovski


Após se iniciar brilhantemente com A Infância de Ivan (já comentado aqui), e se desafiar com a biografia de Andrey Rublev, Tarkovski se embrenhou em uma complexa narrativa: Solaris, inspirado em livro de Stanislaw Lem.

Ali ele traz, através de uma construção de ficção científica, questões extremamente profundas e filosóficas como, por exemplo: o que é o ser (em contraponto aos robôs ou aos diferentes seres que somos em nós mesmos).

Relações com 2001 de Kubrick, lançado quatro anos antes, ou com Blade Runner de Ridley Scott, lançado dez anos depois (sem falar nos tantos outros mais recentes, Aliens e exterminadores e vingadores do futuro...).

Mas em Solaris a viagem é muito mais interna do que externa, não importam tanto os astros e planetas, os efeitos de gravidades aqui são outros.

A história que começa com um psiquiatra sendo enviado ao espaço para acompanhar astronautas em uma nave (que parecem estar extremamente perturbados). 

Primeiro os detalhes sobre a operação, o espaço, o contexto histórico e científico da época, depois vão sendo revelados os efeitos provocados pelo novo planeta - solaris - de onde os astronautas e o psiquiatra estão próximos.

E na segunda parte deste longo filme o foco se volta para o efeito "sobrenatural" de solaris, a possibilidade que ele dá aos astronautas de materializar e se relacionar com lembranças e desejos.

Um processo que é ao mesmo tempo sedutor e desesperador e vai misturando os traumas de lembranças do psiquiatra, seu desejo pelo que era e pelo que se queria que fosse e angustia da impossibilidade.

A angustia do que pode haver além do real.

(fazendo lembrar Sonhos de Kim Ki-Duk - já comentado aqui - ou Time, no qual a protagonista se transfigura completamente com diversas plásticas para testar o amor do companheiro a ela... Mas quem é ela? A original ou a outra surgida?)

Por isso Solaris vai tão além dos fatos que apresenta, seu conteúdo está nas entrelinhas, nas poeiras cósmicas debaixo de tapetes, em buracos negros de pensamentos, em constelações de reflexões...

Filme para nunca se fechar em si e para seguir conosco por anos-luz...

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Na Neblina (V Tumane) - Sergei Loznitsa


Um dos destaques em Cannes em 2012, Na Neblina, do diretor russo Sergei Loznitsa, é contextualizado na 2a Guerra Mundial, nas fronteiras ocidentais da URSS, em regiões ocupadas por tropas alemãs. 


Ali vivem pessoas simples, camponeses, que se vêem em embates de sobrevivência, ética, moral, honra...

O quanto vale a vida, o amor aos familiares, qual o preço do amor à pátria, do que é feita a honra...?
Questões que ecoam e se camuflam na paisagem neblinosa do filme.

Personagens duros, situações extremas e certa delicadeza ao narrar sem pressa pontos de vista distintos diante de impasses. Um russo que é tido como traidor é capturado para ser executado. Não sabemos muito sobre eles ou sobre seus companheiros, mas aos poucos as histórias vão sendo contadas e vamos entendendo a complexidade da guerra a partir de uma narração intimista, com questões singulares e pessoais mas que ajudam a compor o cenário histórico.

Cenário histórico em belas, áridas e frias paisagens. Assim são as locações de florestas invernais com fotografia escura e quase dessaturadas, cujo cume é justamente a neblina das cenas finais.

Filme que embota nossa visão, mas aclara sentimentos e reflexões nebulosos, sem tirar o peso e complexidade da situação.


Bonito, poético e denso.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Like someone in love - Abbas Kiarostami


Não é sobre "um alguém apaixonado" (como diz o título em português) o novo filme de Abbas Kiarostami, se trata mais de gestos que nos levam a um alguém "in love"... em amor (que, sim, em inglês é sinônimo de estar apaixonado, mas pode ser muito mais amplo e complexo).

E assim é o filme... De dimensões muito mais amplas, complexas e profundas.

Narradas através de uma construção simples, quase crua e ao mesmo tempo quente.

O grande diretor iraniano Kiarostami explora seu domínio com a linguagem do cinema iraniano em um tratamento mais próximo ao documental, como já visto em seus filmes anteriores como Close Up ou Através das Oliveiras, mas traz a ficção aprendida com outros cinemas (como o europeu, com quem flertou no filme anterior Cópia Fiel - já comentado aqui) ou como o japonês, flerte atual...

A trama de Like someone in love se passa no Japão e começa com uma garota atendendo um telefonema em off (fora do quadro), apenas ouvimos sua voz e emprestamos seus olhos para ver o que está ao seu redor. 

De cara já se mergulha em certa cultura oriental com gestos do comportamento japonês, mais lacônico e contido.

A construção da cena instiga: a maneira não convencional de apresentar a personagem e sua longa duração.  A cena quase chega a se exceder em formalismo (de não mostrar a personagem), mas quando ela surge vem com tanta simplicidade e verdade que nos entregamos a ela.

Kiarostami faz suas personagens cativarem aos poucos.

Assim no ambiente seguinte, quando a menina novamente volta a usar o celular, ficamos completamente envolvidos com o que está sendo narrado pelo telefone. 

Começamos a intuir sua história e compartilhamos em silêncio sua dor silenciosa: a garota é uma prostituta que tenta se dividir entre sua vida profissional e sua vida pessoal com namorado e familiares, a quem esconde seu outro lado.

E através do cliente a quem ela vai atender naquela noite, essas duas vidas se unem, se chocam, se mesclam.


Um senhor de quem também não conhecemos muito, mas que se vê intrigado com aquela garota tão espontânea, bonita e cativante.

Lembra um pouco os filmes de Wong Kar Wai, mas sem tantos recursos estéticos (de fotografia, arte e trilha, como em Amor à Flor da Pele, por exemplo).

Kiarostami é mais simples, traz cenários mais realistas e fala de um amor mais singelo e cotidiano (sem a dimensão subjetiva e transcendetal de Kar Wai), mas numa delicadeza e profundidade similar.

A partir da personagem deste senhor e da contraposição com o namorado da menina, Kiarostami acaba falando de maneira filosófica sobre o amor também. 

Questões como o ciúme, o respeito, a liberdade e a sinceridade por um lado; questões como a generosidade, o carinho, a preocupação, a atenção, a ternura por outro...


Como diria Drummond: personagens "gauche" mas que vão de "mãos dadas".


Para onde não se sabe, pois em seu não-convencionalismo, Kiarostami muda algumas vezes a direção da narrativa e termina surpreendentemente, nos deixando no ar (pelo amor, pela densidade e pelo final em aberto).

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Gebo e a Sombra - Manoel de Oliveira


Incansável, já em pré-produção de seu próximo filme, Manoel de Oliveira, aos 103 anos (quase 104), é autor de de dezenas de filmes (alguns já comentados aqui) e lança seu mais recente na Mostra Internacional de São Paulo (sua fiel escudeira brasileira): O Gebo e a Sombra.

Falando sobre cinema literário a partir do último filme de Raoul Ruiz, recém-comentado aqui, Manoel parece um mestre das adaptações (já adaptou e flertou com alguns clássicos literários como A Divina Comédia, de Dante, Singularidades de uma Rapariga Loura, de Eça de Queiroz e diversos textos de Agustina Bessa-Luís.

Mesmo em seus roteiros originais a palavra sempre tem suma importância, o que se pode ver até pelos títulos: A Carta, Palavra e Utopia ou um de seus mais geniais: Filme Falado.

Manoel costuma trazer diálogos longos e densos, sem tantas gesticulações e movimentações e mesmo sem tantas metáforas visuais. 

Vale o confronto de suas personagens através das palavras, e também de suas buscas por elas, através dos silêncios, suspiros, choros...

O Gebo e a Sombra conta a história de uma família em crise: o filho sumido, a mãe em depressão, a nora sem ação e o pai tentando manter a honra e a dignidade a qualquer custo, encobrindo roubos e ganâncias, vivendo privações e podendo pagar um preço alto por isso.

Essa é a "entrelinha" da história que pode ser vista como metáfora para a crise em que vive o capitalismo e a sociedade portuguesa.

Alguns paralelos são possíveis a partir da trama enxuta e precisa de Manoel.

Economiza em locações e arte, mas esbanja na fotografia escura que produz belos contornos e contrastes e nas grandes interpretações de Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Jeanne Moreau;


E de seus parceiros portugueses: Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e seu neto Ricardo Trêpa.


Os aspectos teatrais e pesados de Manoel podem dificultar a relação do público com seus filmes, mas uma vez dentro de suas tramas difícil também sair... 

Ficam em nós e ecoam, em profundas reflexões de questões atemporais e tempos nostálgicos, etéreos e eternos.

La noche de enfrente - Raoul Ruiz


Como levar ao cinema verbo e emoção?

Como trazer o tempo de vírgulas e reticências e o tom de exclamações e pontos finais?

Construção totalmente abstrata, mas visível e audível em La noche de enfrente, do chileno Raoul Ruiz.

Em sua filmografia essa aproximação com a questão do tempo e a relação com a literatura (evidentes na adaptação de um dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido de Proust com O Tempo Redescoberto).

E em sua biografia a aproximação com a temática de seu último filme: o protagonista às vésperas de sua aposentadoria, narrado pelo diretor à beira de sua (já sabida) morte.

Sem muitos cenários, misè-en-scene, personagens ou intervenções estéticas, o filme tem densidade pelas palavras e principalmente pelo silêncio. 

É instigante e difícil, muitas vezes parecendo pouco cinematográfico e em outras tantas parecendo o perfeito espaço literário dentro da sétima arte.


Cheio de imagens soltas e simbologias, chegando a ser excessivo e hermético, mas trazendo também poesia ao filme.


Sem conhecer muito da filmografia de Rouiz, indico também as palavras de Zanin, em crítica que pode ser lida aqui.


E um salve às palavras, aos sons e às imagens!

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Além das Montanhas (Dupã Dealuri) - Cristian Mungiu


Após o destaque com o maravilhoso 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, o diretor e roteirista romeno Cristian Mungiu apresenta Além das Montanhas.

Novamente um olhar intimista e delicado sobre jovens meninas na Romênia.

Dessa vez as meninas são órfãs de pequena cidade provinciana, que tentam encontrar um caminho em meio à falta de orientação e perspectiva.

Uma delas, Voichita, se encontra em um convento, onde as diretrizes claras e duras lhe dão uma direção e conforto (o conforto da fé). 

Já a outra, Alina, busca seu conforto justamente na relação que tem com Voichita.

Alina tenta se adaptar à vida do convento para estar próxima de Voichita, mas seu espírito mais inquieto e contestador não se adaptam ao cotidiano austero e dogmático.


É travada então uma verdadeira batalha de crenças e paixões distintas, embates que chegam a exorcismos extremos,

e nos fazem refletir sobre a fé, o amor, o desamparo, e muitos sentimentos que podem haver além de rostos comuns de garotas ou que pode haver além de montanhas...

A narrativa crua: sem efeitos, sem trilha, cenários, iluminação e interpretações realistas somado ao tema profundo dão o caráter transcedental do filme -

fazendo lembrar o profundo e poético Homens e Deuses, de Xavier Beauvoisjá comentado aqui.

Cristian Mungiu se destaca mais uma vez, inclusive recebendo prêmios de roteiro e elenco em Cannes, e se firma como um nome importante no cinema romeno. 

Em Família (in the family) - Patrick Wang


Primeiro longa de Patrick Wang, Em Família é um filme autoral e intimista - Patrick além de dirigir é o roteirista e protagonista do filme.
Patrick se propõe uma tarefa nada fácil: falar de um tema delicado e dramático mas dando ênfase ao cotidiano e seu tempo (cheio de uma fluência não fluida) e sem cair no melodrama ou na pieguice.

O tempo está bastante relacionado à origem de Patrick Wang (que inclusive dedica o filme a seu pai), o laconismo e resignação oriental em contraste com costumes ocidentais mais verborrágicos e atropeladores dos EUA.

Já no início, quando conhecemos a "família" em questão, vemos um menino de 6 anos (que por sinal é encantador) se relacionando com seu pai americano e um homem de traços chineses a quem ele chama de pai. 

O menino intercala momentos vívidos e falantes, com momentos mais contemplativos e parece aprender com os dois lições importantes.

Tudo isso em um recorte que privilegia o dia-a-dia: cenas na mesa de comer, nos trajetos no carro ou, mesmo quando no hospital, priorizando momentos burocráticos e não emotivos.

A decupagem e misè-en-scene com planos abertos e em sequência, a iluminação e trabalho de som próximos ao natural e os poucos cortes contribuem para essa construção.


Assim nos sentimos mais próximos da realidade das personagens dessa família.


Nessa construção há também certo preciosismo, certo exagero na opção pelo corriqueiro, pelo detalhe, pela metonímia, há a manipulação do narrador que se distancia bem na hora da revelação de uma morte, manipulação pelo uso de flashbacks e há um exagero na forma como o protagonista assimila suas perdas.

Ele quase não reage e se mantém calado por quase todo o filme.

Apenas numa das cenas finais, quando interpelado por advogados, ele conta todos seus sentimentos e posições, sem demonstrar dificuldades ao falar, o que chega a incomodar pelo contraste com o restante do filme.


Incômodo por certa incoerência do personagem ou pelo olhar ocidental diante do oriental?
De qualquer maneira, a distância intimista que o filme propõe e a temática sobre casamentos gays faz do filme uma experiência original e tocante, vale a pena.